Conto: O Filho da Ulyssys

Um homem de voz grave conta a um garoto: “Antigamente a humanidade vivia num só planeta: este era Selector, o mundo que foi esculpido milimetricamente pela própria Odyssey; tudo tinha a medida certa, as condições exatas para a humanidade; o planeta perfeito. Mas, na vida, filho, até mesmo o perfeito um dia se torna… sem graça. Então surgiram as primeiras naves, que logo se tornaram espaciais, e assim a humanidade se propagou por Odyssey, planeta a planeta até quase tudo estar habitado por nós… por eles, pois nem todos – e guarde isso, Jorge -, nem todos somos iguais por sermos humanos, pois uns são mais que outros. E nessa história, os outros são os ricos poderosos que a história fez.

Depois que a humanidade dominou Odyssey, alguns humanos queriam dominar a humanidade, e esse era o poder. Essa ambição gerou guerras e mais guerras que terminavam do pior jeito: sem um vencedor. Até que um dia, alguns desses ricos encontraram um objeto poderoso, e este era de magia antiga, a mais pura e mais forte; era a magia em si, que devia estar nas mãos da Ordem Mágica, mas ao invés disso…” respira fundo para controlar uma raiva que crescia na sua fala “ao invés disso, estava perdida… mas não mais! Pois quando estes ricos encontraram o cálice divino, usaram seu poder e enfim venceram a guerra… e sabe que poder é esse que contém o cálice sagrado, J?” Pergunta retoricamente à criança, que curiosa e tensa responde “não!”.

“A imortalidade… e sabe o que um homem faz quando não precisa temer a morte?” Pergunta novamente no mesmo tom.

“Não!”, responde o jovem.

“Tudo!” Diz o pai olhando nos olhos do filho. “Essa é a história que você nunca mais vai ouvir de como nasceu o Comando Central de Odyssey. E é por isso que nós existimos: os outros não podem reinar; nós somos a última linha contra esse sistema podre que rege nossa amada Odyssey.”.

E tudo permaneceu como contou o pai por centenas de anos na galáxia – até a grande invasão -; o poder sobre a humanidade inteiramente com o Comando Central de Odyssey, que por sua vez regia bem a galáxia. Coberta por uma grande camada de propagandas que incentivavam acima de tudo o amor e a valorização pela “Nossa Odyssey”, essa instituição era imaculada perante a opinião pública.

Sempre pregando o progresso, era constante a realização de grandes missões pelo CCO, como desde o abastecimento de populações pobres até aquelas que geralmente tinham menor proporção: missões de reconhecimento e/ou de pesquisas científicas. O povo não estava interessado nessas últimas, então não ocorriam sob intensa supervisão, mas de forma livre. E assim o Comando Central controlava os rumos da sociedade com assustadora facilidade. Já que basta controlar o passado para controlar o presente, e assim o futuro, tudo dependia de omitir e manipular fatos históricos passados, e isso podia ser feito alterando as provas dos ocorridos, ou simplesmente apagando-as.

E no ano 240 antes da invasão, esse foi o intuito da equipe mais fatal à disposição do CCO no planeta de Parpango. A missão era simples: encontrar e, com um só disparo rachar ao meio a cabeça de alguém que se auto intitulava “O Último Mago”, também conhecido como “Mago Negro” e “Orisus, o sábio”. O motivo da missão era tão simples quanto ela: para quem quer controlar pessoas, um dos primeiros fundamentos é controlar suas crenças, e os grandes cabeças do CCO sabiam disso. Transformar os magos, a Ordem Mágica e a própria magia em nada mais que mitos era necessário para que uma crença fosse criada e mantida manuseável pelo Comando, e para transformar tudo isso o que um dia havia sido real e tangível em mitologia, era necessário que não houvesse prova alguma de que na verdade eram mais que lendas – ainda mais uma prova assim, viva, ao alcance do povo. O Último Mago era um risco sério à estabilidade do sistema, uma vez que havia grandes chances de ele saber mais do que devia; precisava ser contido.

Acontece que os cinco melhores agentes do CCO não foram páreos para Orisus. Ele se sobressaiu de todas as formas, e ainda capturou dois destes cinco agentes e os manteve em cativeiro. Com a situação já crítica, os sete líderes por trás do CCO compareceram em pessoa no planeta Parpango. E com uma pequena frase – algo parecido com “Eu conheço seu segredo primordial, só preciso de um holofote.” – Orisus ganhou a consideração dos sete às suas exigências: se deixassem-no em paz, ele jurou guardar o segredo. Acordo fechado! E o CCO voltou para sua sede, com exceção dos dois mantidos em cativeiro; achava-se que estivessem mortos.

Na verdade duas coisas faziam parte do plano de Orisus: primeiro, a esses dois aprisionados ele contou tudo sobre a verdadeira história do CCO, dos magos e de muitos outros segredos de Odyssey, e assim formou as duas mentes que seriam responsáveis pelo início do poderoso antagonista do CCO – George e Helan fundaram a organização secreta chamada de Ulyssys. A segunda coisa era um poder extraordinário que o CCO guardava, e que com certeza só ficava sob a posse dos sete grandes senhores: o Cálice da Imortalidade! Era este o seu maior segredo. E este artefato mágico Orisus quis pelo menos por algumas horas por perto de si, para que ele pudesse pegar o cálice e usar em algum plano mirabolante. “Roubar o cálice?”, perguntaram os agentes sequestrados George e Helan quando ele explicou seu plano, e nas sábias palavras de Orisus, este respondeu “Roubar de quem roubou é um crime relativo!”. Fato é que ele conseguiu: a longa espera por uma negociação era uma distração para manter os sete e o cálice em Parpango, e fácil como tirar doce de criança, Orisus apenas invadiu a cabine especial dos cabeças na sua nave e revirou as gavetas. Pensavam não ter motivo para um esconderijo tão bem arquitetado, já que ninguém sabia daquilo por centenas de anos, exceto os sete. E esse foi seu maior erro: subestimar Orisus! Este, por sua vez, saiu vitorioso, pois tomou posse do cálice e fez com que fossem embora com o acordo selado anteriormente. E foi assim que os sete perderam o cálice, e algo então estava prestes a colapsar!

O cálice mantivera os sete vivos por centenas de anos – desde o início do CCO; eram os fundadores. Aliás, esse fato foi chocante para George e Helan; talvez o mais chocante, a ponto de fazê-los acharem o sistema injusto e idealizarem um poder paralelo que um dia pudesse mudar isso. O maior crime era sete seres humanos serem mais que humanos; terem um poder ao qual ninguém mais tinha acesso, e assim prolongarem pela eternidade o mandato sobre a instituição mais poderosa da galáxia… era absolutamente injusto que alguém burlasse a própria Senhora Morte e seu reino! Tão absurdo o crime, que esse argumento foi intensa e constantemente introduzido na doutrina que formava os soldados e agentes da Organização Ulyssys, que a partir da sua criação apenas cresceu, na surdina, de forma que nem mesmo o alto escalão do CCO soubesse sobre sua existência.

E Ulyssys foi tomando grandes proporções, graças a agentes que se tornaram verdadeiros mártires na organização; o segredo era criar agentes verdadeiramente leais por meio de sua doutrina, e assim foi feito, em 60 antes da invasão, com um dos agentes mais importantes da Ulyssys: Cristhian Jorge, que, no que ficou conhecido como “O compilado lendário de missões”, entre muitos pequenos fracassos e um grande sucesso, levou à justiça um dos sete líderes do CCO, e este foi preso e morreu em pouco tempo na prisão. Cristhian Jorge ficou inter-mundialmente famoso pelo feito como o homem que mostrou que existia esperança no sistema, e as coisas podiam ser feitas por meios legais. É claro que ele nunca revelou Ulyssys publicamente, pois sabia que, embora ele tivesse alcançado o sucesso, ainda havia muito trabalho a ser feito. Apenas uma pessoa foi privilegiada por ouvir as histórias completas e inteiras de Cristhian de Ulyssys, e este era seu filho, Josué Jorge, a quem contou tudo sobre sua trajetória.

Josué Jorge, mais que seu amado filho, era seu sucessor na Ulyssys; um “Cristhian mais completo”, alguns diziam, falando até mesmo de um tipo de messias predestinado a desmascarar e acabar com o CCO. O garoto já era uma lenda antes mesmo de começar a andar, e tinha tudo para cumprir seu destino, pois seus olhos brilhavam a cada história do pai, suas emoções ficavam à flor da pele, ele sentia arrepios na espinha por cada descrição, lacrimejava e gargalhava a cada final irônico. Ele com certeza estava bem encaminhado, mas no início de sua adolescência foi marcado por uma grande tragédia: “Cristhian Jorge, o lendário herói que prendeu o grande ser por trás da parte corrupta do CCO, e assim pregou a fé no sistema, morreu hoje de causas naturais!”, foi a manchete daquele dia. Ele não podia fazer nada, não tinha a quem culpar, só lhe restava seguir sua vida. É claro que a Ulyssys não poderia deixar o garoto à deriva, e então Josué foi levado e mantido sob os cuidados da organização, onde foi treinado secretamente e preparado como um futuro líder; “treinamento militar físico e estratégico avançado” foi uma das nomenclaturas que ele nunca se esqueceu. Publicamente, ele ficou sob os cuidados de seus tios de consideração.

E foi diante desse contexto que, dos onze – quando seu pai morreu – aos dezoito anos, Josué Jorge cresceu. Um exímio soldado, o melhor estrategista, o maior conhecedor de Odyssey e um líder extraordinário formado; muitos diriam que “a maior chance da justiça em Odyssey!”. Ele colocava o primeiro pé em seu destino inevitável quando um acontecimento importante se fez: a volta à sua vida daquela que havia sumido quinze anos atrás: Marla, sua mãe.

Cristhian e Marla tiveram uma relação complicada, mas ela o satisfez de sua maior ânsia na época: um filho; um sucessor, e isso bastou em sua vida, não precisava de amor. Então se afastaram, mas por anos Marla sempre se importou com Cristhian e seu filho; ela ainda o amava, e talvez ele também, mas o fato é que nunca mais se encontraram. Talvez por remorso, talvez por senso de justiça, ou por qualquer outro motivo, Marla não se contentou com a forma como Cristhian havia morrido, e como uma águia que persegue sua presa, incansavelmente por sete anos, ela investigou sozinha a morte de Cristhian até chegar na conclusão mais trágica possível. Então, aos dezoito anos Josué descobriu que seu pai havia morrido, não pelo Tempo, mas pelas mãos de outro. Marla contou como aconteceu, e descreveu o motivo:

Jorge era a maior promessa do século para Ulyssys, mas para Cristhian era um filho, daí o conflito de interesses entre a organização secreta que queria transformá-lo numa máquina de liderança e guerras e um pai que queria que seu filho tivesse o direito basilar ao livre arbítrio; era no que acreditava, no que sempre acreditou. Mas um só homem não tinha tanto poder quanto uma organização, e foi fácil para esta tomar o garoto à força e começar a montar a máquina; bastou uma noite e uma alta dose de adrenalina no sangue, parada cardíaca, sem suspeitas. Essa é mais uma história de como tirar a coisa mais importante de alguém, como doce de criança… talvez Orisus tenha ensinado demais a George e Helan.

Então, sob a verdade cruel e a culpa mais corrosiva de todos os sentimentos, Josué fugiu daquele que era seu destino. Para onde? Nem mesmo ele sabia! Apenas foi. Caminhou, voou, pousou, habitou, morou, matou por fora, morreu por dentro, e bebeu, bebeu e bebeu, até afogar todas as suas mágoas nos momentos de loucura (este Josué Jorge um dia viraria mazela do passado, mas não hoje ainda!). Ele sumiu no espaço e no tempo, que passou ferozmente, e fez com que aquela sensação de justiça que Cristhian Jorge trazia à galáxia também passasse, e então os seis cabeças restantes do Comando Central de Odyssey tiveram tempo para se reerguer e respirar fundo.

Por sinal, respirar fundo era uma grande dificuldade para seis velhos de aproximadamente 700 anos cada. Sem o cálice, eles não conseguiam mais adiar o Tempo, nem fugir da morte – que àquela altura com certeza seria breve. Estudos secretos antigos diziam que “um humano que bebia no ‘Cálice Divino’ e hoje não bebe mais, sobrevive até no máximo 100 anos após o último contato com o ‘artefato mágico’; isto ocorre porque os efeitos são intensos e poderosos, por isso seu uso vem acompanhado de grande respons…” – essa parte da bula não interessou aos sete, que agora eram seis e estavam quase caindo aos pedaços literalmente – desmembramento gradativo era um efeito colateral. Diante desse contexto encontravam a urgência de algumas ações, pois eles já haviam vivido mais de um século e meio após seu último contato com a magia…

Se as cabeças morressem todas, o corpo iria junto, e na ausência do CCO eficaz como era, Odyssey entraria em colapso com certeza – como já estava acontecendo, se tem como exemplo a infeliz decisão tomada no Conselho de Hidon-Fater, o caso que quase gerou uma guerra interestelar contra o grande império Pulsar, e assim só não o foi graças aos Defensores da Liberdade. Enfim, este foi o raciocínio que pesou até que uma solução fosse encontrada: manter as cabeças vivas. O meio para isso, obviamente era reencontrar o artefato. Trabalhos não foram poupados, pesquisas, buscas, caríssimas naves e satélites sensoriais, ao longo de todos os anos que passaram desde que Orisus tomou o cálice do CCO e sumiu para sempre. Até o ano de 15 antes da invasão, 235 anos depois da fracassada Operação Parpango; enfim, tempo o suficiente para que a tecnologia sensorial ficasse impecável. E pelos satélites é que foi encontrado o divino cálice, exalando ondas de magia aos sensores sofisticados. No entanto, agora o problema era o local em que o cálice se encontrava. “… Ilha Consciente de Ginnungahar, planeta Parpango. Sua missão é recuperar um artefato que pertence a nós, mas por imprevistos não está mais em nossas mãos.”, leu Jorge, esforçando sua vista contra a mensagem, num visor que refletia a luz do Sol, mal disfarçando a ressaca. Continuou a ler:

“Pouco se sabe sobre a ilha em questão, apenas que é um ambiente extremamente hostil por natureza, de forma que as fracassadas missões de reconhecimento terminam com o sumiço dos agentes designados – provavelmente por óbito. Muito foi relatado sobre habitantes nativos selvagens na região, extremamente agressivos e fisicamente capazes, de um dialeto desconhecido por todas as fontes do CCO, mas como relatado por nossos agentes: ‘eles louvam a alguma coisa…’. Estes enfim são seus inimigos em solo firme! Pois a ilha é composta por uma parte subterrânea, que é preenchida por água, e é aí que se encontra o artefato que o Sr. deve trazer para o CCO. Não se sabe com exatidão onde se encontra, apenas que o selecionado para a missão deve vasculhar pela água, de um extremo a outro da ilha. Os sensores que captaram os sinais emanados pelo artefato procurado também captaram uma cobertura de madeira, possivelmente um baú, dentro do qual o objeto possa estar. A respeito deste rio que dá caminho ao subsolo, a única coisa que sabemos sobre é o fato de a água ser salgada. Os inimigos que podem aguardar dentro das águas talvez sejam bastante ofensivos. O designado à missão possuirá o equipamento adequado que permite respirar debaixo d’água, e assim ter mais agilidade para fugir de qualquer ameaça. E sobre o desígnio da missão, Sr. Jorge, o CCO tem a equipe de inteligência mais eficaz de toda a galáxia, e o senhor foi resultado de uma busca por efetividade e fatalidade na missão. Isto significa que sabemos sobre todas as suas missões secretamente bem sucedidas como contratado, sabemos como é o maior desvendador de mistérios e com certeza um dos maiores conhecedores da nossa vasta galáxia de Odyssey, mas também sabemos sobre sua herança, e de quem ela é herdada. Sabemos como o senhor come, como respira e quando dorme, sabemos sobre sua instabilidade e sobre tantos golpes que dá nos seus contratantes; significa que sabemos mais que Josué Jorge quanto o próprio, então não hesite em um momento sequer no cumprimento da missão, que é: encontrar e entregar ao CCO um cálice dourado. Caso haja a hesitação na realização do dever, saberemos também, e as consequências serão hostis. Boa sorte na missão!

De: Comando Central de Odyssey.
Para: Josué Jorge.”
Ele sorriu ao terminar de ler, pela ironia do assunto da mensagem. Trabalhar para a instituição contra a qual seu amado pai lutou a vida toda. Foi engraçado, e como um homem sem princípios, resolveu aceitar a missão. Parecia um contato – de uma forma ruim, mas ainda assim um contato vago com o passado; aceitar a missão dava nele uma fugaz sensação de nostalgia. Talvez por isso ele tenha aceitado a missão… mas fato é que aceitou, e essa foi a notícia que correu como segredo pela galáxia, até chegar aos líderes da Ulyssys. Dessa forma, a imagem de um rapaz perdido e confuso que precisava de tempo para aceitar tudo o que houve com ele foi por água abaixo. Agora a ideia de “Josué Jorge” era a de um traidor, sem escrúpulos e que aceitava a quem pagasse mais. Josué era alguém que não merecia o nome do pai; em quem não havia honra, e dessa forma, na mesma intensidade que Cristhian promoveu a crença no bem, Josué promoveu com tal traição a todos da Ulyssys a descrença.

Mas talvez, dessa forma, Josué fosse mais eficaz que seu pai contra o podre CCO.

E pensando nisso, na noite anterior ao início da missão, quando ele lia a ficha dos agentes que adentraram a ilha antes dele, bolava estratégias para então penetrá-la, estudava os mapas e tudo o que se tinha sobre Ginnungahar, ele ouviu passos sorrateiros que pareciam ter vindo da janela, atrás dele. Permaneceu imóvel na sua cadeira até que os dois invasores se aproximassem dele mais e mais, e na distância exata, virou num chute voador que os nocauteou. Ele olhou para suas vestes, não carregavam nenhum emblema, mas pela forma como se recompuseram, como retomaram sua guarda, ele os identificou: “o que a Ulyssys quer de mim?”. Não responderam. Na verdade, subitamente atacaram-no novamente. E entre golpes e contra-ataques, Josué, que já estava exausto, deteve os dois novamente. A essa altura já havia percebido que eles não lutavam para matar, apenas para neutralizar. Logo, ligou os pontos, analisando o contexto do momento: queriam raptá-lo para impedí-lo de realizar a missão.

Cansado, ele explicou aos dois agentes da Ulyssys aquilo que o afligia nesta noite:

“Não que eu deva algo a vocês, mas pensem um pouco, meus caros: eu, filho do maior agente que sua organização secreta já viu, por consequência um dos maiores conhecedores de tudo isso o que chamamos de ‘Odyssey’, acham mesmo que eu não sei do que estou atrás? Meu pai me contou histórias sobre o cálice divino, que dá a imortalidade às seis velhas cabeças restantes do CCO. Não concordam comigo que tirar o cálice das mãos deles é a maior chance de detê-los? Assim não precisamos matá-los ou nada do tipo…” ele respirou cansado da briga, e atrás dele chegava sorrateiro um terceiro agente; ele percebeu mas fingiu que não, e continuou:

“É só deixar que o Tempo e a Morte os alcancem naturalmente. Não vêem a oportunidade que me deram nas mãos?…”, ele continuava ignorando o terceiro agente, e fitava os dois à sua frente com ódio no olhar. “Eles, assim como vocês, me vêem como uma máquina irracional a seguir ordens, por isso peço que continuem me subestimando, pois assim consigo surpreendê-los, os dois! Para mim, Ulyssys e CCO só têm uma diferença sutil: um já detém o poder, outro ainda tenta alcançá-lo.”.
“Isso não é verdade!” Foi a fala do então terceiro agente que permitiu a Josué o reconhecer como sua “mãe?!”.
“Eu sei que a Ulyssys nem ao menos merece que você concorde com como nós agimos,”, Jorge rebateu “‘nós’?”. “Sim! Houve mudanças desde a inescrupulosa decisão de…”, Josué completou “de matar meu pai?”. “Sim! A Ulyssys perdeu a mão, e sei que erros não se apagam assim, por isso não vim aqui pedir confiança, muito menos te raptar!” Josué então olhou confuso ao redor; aquilo tudo era um choque.

“Me escute, Jorge, devo ser breve: aquela ilha, ela… ela não é só uma ilha… digo, você não sabe tudo sobre o cálice: seu poder não é imortalidade… é a própria vida! Um dia Orisus roubou o cálice, e essa história você já conhece; mas seja lá o que ele tenha feito com o cálice, deixou-o depois de usá-lo jogado no solo de Parpango, em uma ilha qualquer, onde não poderia causar mal a ninguém. Mas então mais de 200 anos se passaram, e o cálice tornou o que antes era nada mais que terra, plantas, madeiras e água, em algo vivo; numa ilha consciente – que sabe-se lá como, mas vai tentar proteger a todo custo aquilo que lhe deu a vida… não se sabe muito bem como funciona o cálice, mas ele é, assim como tudo o que é magia… é traiçoeiro! Uma magia funciona de forma complexa, você sabe, mas essa… uma magia ligada à criação de vida como essa é extremamente perigosa, ela dá vida em certa intensidade, e na mesma tira vida de tudo o que puder… quer dizer que o cálice vai roubar seu tempo de alguma forma. Cada segundo a mais naquela ilha são horas, talvez dias ou até anos a menos de vida. Por isso, vim te deixar essa simples mensagem: tome cuidado.”.

Jorge, com a cabeça muito confusa, esbanjava muitas dúvidas em seu olhar, e quando Marla percebeu lhe disse: “ora, filho, a explicação que você espera não é nada chocante. Essa é a mesma história de sempre: no trabalho eu conheci seu pai, e quando me afastei dele, me afastei da Ulyssys; ele fez de tudo para… isso não importa, o que importa é que isso o que está acontecendo deve ser resolvido, é algo maior do que nós.”, ela pegou e segurou as mãos do filho “Sabe, filho… Odyssey exige muito de nós, e se quisermos mudar algo aqui, temos que dar um passo enorme contra nós mesmos: não podemos nos priorizar.

O foco tem que estar completamente na missão… talvez isso não passe de uma doutrina da Ulyssys, mas é o que tem funcionado…”, ela sorriu. “Agora, como venho dito: tempo de sobra é algo que nem posso sonhar em ter, por isso tenho que ir. Quando tudo isso passar, se um dia passar, conversaremos como uma família comum. Adeus!”.

Ela se virou, e Josué permaneceu calado, mas seu semblante compreensivo já mostrou a ela que ele entendia a situação. No entanto, algo faltou ser dito, e então ela se virou rapidamente e, à distância, lhe disse em voz alta: “Filho… estou orgulhosa. E sei que seu pai também está!”. E assim ela saiu pela janela com seus dois companheiros.

Josué, cansado, foi então para a cama, tentar descansar para o dia seguinte. Já no amanhã, quando pôs os pés naquele solo movediço, uma sensação estranha o tomou: tudo naquela paisagem parecia notá-lo, como se as coisas esperassem pelo seu próximo passo, antevissem até mesmo seus pensamentos. Aquele lugar logo começou a mexer com ele. Onde Josué se via sempre cercado por árvores, fogueiras, areia e nativos – e estes, aliás, ele percebeu: como dizia na mensagem do CCO, louvavam algo mesmo, mas parecia ser o solo em que pisavam; a Ilha Consciente de Ginnungahar era o seu deus. E um deus poderoso, que parecia poder brincar com a mente e o corpo de Josué; em alguns minutos na ilha, parecia conhecê-la já de cabo a rabo, como se uma intimidade entre os dois tivesse sido fortalecida pelo passar de anos e anos.

E Josué se lembrou novamente da mensagem do CCO, na parte que descrevia os inimigos: ‘os nativos e os animais aquáticos’; estava errado. O verdadeiro inimigo ali era o espaço, a própria ilha, que parecia agora sorrir com uma voz estridente na sua cabeça. Mas ele se manteve atento, e foi, sorrateiro e fatal, e enquanto fazia um bom trabalho burlando a percepção dos nativos, notou mais uma estranheza sobre os selvagens: tinham rostos familiares, que ele tinha visto recentemente… “são os agentes do CCO que falharam na missão!”. “Mas como diabos se transformaram naquilo?”, uma pergunta que se fixou em sua mente. A qual ele tentava ignorar para manter o foco. Mas logo ele conseguiu; pegou a chave do baú e, imperceptível – até estranhamente fácil, na verdade -, quando mergulhou em silêncio no rio, decidiu qual direção tomar; e lá embaixo ficava cada vez mais confuso. O rio subterrâneo se tornou então um labirinto submerso em água, e quanto mais fundo ele o penetrava, mais alto a voz ficava na sua mente. Foi quando surgiram peixes gigantes de algum lugar… mas eles nem sequer se desviavam, não davam qualquer atenção a Josué, como se estivessem dominados por alguma emoção uniforme, que os fazia seguir em linha. E ele entendeu que a emoção uniforme era a ilha agindo em seu sistema nervoso, e pensou nos nativos, que também agiam da mesma forma, hipnotizados. E os pontos começavam a ligar, as vozes cada vez mais audíveis na sua mente. De repente, ele estava entendendo aquela ilha consciente, que o queria mesmo lá. Ela precisava de Josué em contato com ela, pois, como disse, “tenho fome, preciso me alimentar!”. Por isso ela o agradecia a todo momento: ele era seu banquete.

Subitamente, diante disso, veio à mente de Josué a resposta da pergunta que se tinha feito sobre como os agentes se tornaram nativos. E pela última vez as peças se encaixaram. Como sua mãe o havia dito, o cálice de alguma forma tentaria sugar sua vida, e eis o banquete da ilha: o tempo que Josué tinha pela frente; e quando a ilha terminasse de almoçar, ele seria então um velho acabado, um novo nativo, um novo agente fracassado e mais um número se somando a todas as circunstâncias. Mas ele sabia que havia nascido para ser exceção, e por isso devia terminar sua missão antes da ilha terminar o banquete. Era uma batalha entre homem e ilha, e em última instância, entre homem e sistema. “E nessa briga”, pensou, “o gigante é Josué!”. Mas, conforme disse Marla, ele enfim se lembrou de se pôr em segundo plano, pois o que importava mesmo ali era o futuro da galáxia. Então seu peito encheu de bravura e ele avançou, quando, num movimento genuíno de coragem, encostou na parede do labirinto, e subitamente como a luz, retornou ao início da missão. Ele caiu nas mazelas da ilha, e quando se levantou, foi como morrer e renascer. Aquela foi uma reencarnação e tanto: intensa como nada que houvesse vivenciado. Assim foi pois ali, no espaço entre a morte e o renascimento, ele parecia ter vivido alguns anos a ponto de retornar com uma bagagem antepassada. Enfim entendeu que aquela missão exigiria algo a mais que sua eficácia convencional: precisava ser perfeito – ainda mais pela surpresa que foi renascer mais pesado, com menos vigor e pouca vontade de tentar novamente… ele de fato envelhecia a cada morte!

SUA ODISSEIA COMEÇA AGORA…