Conto: O Último Pôr do Sol

A Profecia

A simples e genuína sobrevivência é um bom estilo de vida. Sentir o prazer de respirar, o sabor do ar e a beleza de pequenos momentos talvez não tenha preço – ou então poucas coisas no universo valem mais que isso. O que com certeza não tem preço – e ele enfatiza a convicção nisso – é a família. Amar a alma inocente que é incapaz de amá-lo na mesma intensidade, por ser tão inocente a ponto de não saber o valor desse afeto paterno. É o sentimento de um criador para com sua criatura; o pai para com a prole. E eis Josué Jorge, o homem que conta histórias e ensina lições à sua amada filha, que é com certeza a melhor coisa que já lhe aconteceu.

E aconteceu. A história de como aconteceu é exatamente como qualquer outra história de duas pessoas que se apaixonam: um embrião é o necessário para completar essa paixão. “Do amor entre Josué e Cristina, nasce uma nova estrela chamada Beatriz!”. Essa era a história que ele mais gostava de contar à pequena Beatriz, e ela amava ouvir tudo o que saía da boca do pai. Ele contava ao fim de toda noite uma grande ou pequena história, real ou não, sobre um aventureiro de Odyssey chamado Dr. Jones, que desbravava a galáxia cheia de mistérios que os rodeavam. Ele apontava para o céu e dizia como o Dr. Jones havia salvado cada planeta brilhante das noites, em histórias tão detalhadas, como quem presenciara todas elas. E é claro que ele havia presenciado. Na verdade, é claro que ele era de fato o próprio Dr. Jones, e aquelas eram suas histórias; histórias de um passado distante, de um Josué antigo que ele jurou manter soterrado no passado para sempre quando conheceu Cristina. Aquele garoto vazio e bêbado havia morrido na ilha de Ginnungahar – era o que ele dizia em voz alta para si mesmo todas as noites depois de se despedir da razão do seu viver, quando esta pegava no sono com as histórias; frente a frente com o espelho, toda noite ele se convencia de que tinha total controle sobre o seu reflexo, e esse era o seu ritual cotidiano para se manter estável. Isso é que era sobreviver!

No entanto, apesar das afirmações e da firmeza, existia nele o medo profundo de que esse amor, essa vida e tudo isso fosse apenas uma fuga do seu “Eu” antigo. Ele não suportava a ideia absurdamente possível de que o mundo girava em torno dele; de que ele pudesse mesmo ser tão egoísta a ponto de amar só para se sentir bem consigo. Certamente esse medo tinha uma origem: “O líder da Ulyssys, sucessor de Christian Jorge; o lendário” – entre outros traumas que o protagonismo galáctico enfiado nele desde a adolescência deixaram. Ser protagonista de mais uma história era o seu pesadelo. Parecia imutável, como uma lei natural ou física de Odyssey, que depois de se tornar pai só se devia ser pai, e nada além.

E como agora um bom cumpridor de leis, adulto, que as compreende intimamente e concorda com sua existência, ele faria jus à sua natural posição de pai, e essa rotina perduraria até que não se julgasse mais necessário na vida de Beatriz – o que feliz ou infelizmente demoraria ainda.

Porém, se parecia estar escrito na eterna folha da história de Odyssey que o resto da sua vida seria esse, o destino com certeza daria um jeito de abalar os pilares de um pai dedicado aplicando uma boa reviravolta. E este Destino se divertiu pondo Josué diante de uma crise dual:

O vento sibilava tão bonito naquele dia, que se misturava com o canto dos pássaros, e vinha leve, trazendo borboletas coloridas numa dança até a janela do seu quarto, a qual atravessava e chegava como música de primavera aos ouvidos do papai Josué, que acordava feliz nesse lindo dia. E por que não estar feliz? Odyssey lhe desejava bom dia em pessoa por meio da natureza; e depois disso, após a escada, lá embaixo, duas estrelas brilhantes o esperavam para o café – frutos ou raízes da sorte que ele tinha de estar vivo. Eram Cristina e Beatriz; mais que esposa e filha, eram amor e felicidade; mães do planeta Yüshue inteiro, enquanto ele era apenas um habitante. Pelo cheiro do café, que invadia sutilmente seu olfato, ele foi levado leve ao corredor, às escadas, à sala e por fim à cozinha: núcleo da fumaça que o encantara na sua cama.

– Bom dia, dorminhoco! – aquela voz sorridente que, agora na audição, fazia parte do espetáculo sensorial da manhã. Sorriu ao ver a bela e natural Cristina, distraída na mesa e dizendo sem dizer como a vida era uma dádiva. Quando ele olhou para a outra cadeira:

– Cadê Beatriz? – perguntou despreocupado enquanto se sentava.

– Você dormiu tanto que a euforia da criança a tornou impaciente demais para esperar o amado “papai”. – enfatizou com sarcasmo a última palavra. – Está no jardim.

– Isso é… – exercitou o olfato – é ciúme? Porque cheira a ciúme! – o casal riu, e Josué pôs-se a comer.

Ao fim da refeição maravilhosa, ele foi enfim começar seu dia com o maior amor da sua vida, e foi confiante. Foi aí que o Destino feroz e sagaz começou a atuar com seu humor. Na porta, quando sua visão alcançou Beatriz, o mundo ideal foi subitamente suprimido e tomado pela preocupação mundana quando Josué notou um homem de grandes vestes negras interagindo com a pequena Beatriz. Antes de berrar, Josué percebeu a cena: Beatriz sentada como ouvinte, e o velho divagando pelas anedotas de alguma história interessante. Então ele berrou:

– O que é isso?

O velho, quando o viu, falou mais duas ou três frases rapidamente a Beatriz e começou a correr para a floresta, e Josué foi raivoso atrás daquele maldito que ameaçava a integridade da coisa mais importante da galáxia. Para Beatriz foi surpreendente, como ver a paz ingênua se tornar ódio impetuoso; para Josué foi cansativo – tanto que já estava sem fôlego no início da floresta que cercava seu rancho. Com os seus quarenta e tantos anos de idade, ele não alcançaria o velho, que a essa altura já havia sumido entre as árvores. Ao perceber isso, Josué se virou para a casa e voltou andando, com um olhar inquieto. Mirou Beatriz e foi fulminante em sua direção. A criança não sabia o que esperar, mas o que quer que fosse lhe causava medo do seu pai, que a fez uma pergunta com sua voz exausta e séria:

– O que ele te disse?

– Ele só estava me falando sobre a Profecia, papai… – “disse a ingênua”, Josué pensou.

E então proferiu o gesto que Beatriz mais gostava: ajoelhou-se devagar, mantendo os olhos nos dela, agarrou seus ombrinhos com suas grandes mãos paternas e perguntou-a com um tom respeitoso:

– Que Profecia, meu amor?

Ela respondeu com prazer que era uma história tão extraordinária quanto as que ele próprio, Josué, a contava sobre os tempos antigos, mas que ela nunca tinha ouvido sobre algo tão longevo:

II

Beatriz procurava pela diversão em todos os cantos, como era quando seu pai não estava junto; algo interessante que pudesse a entreter. Nada na floresta, nada no céu, nada em nenhum dos horizontes, mas surgiu algo no chão: uma sombra que vem de cima, que ela percebeu quando virou; vinha de um homem de manto negro que estava parado atrás dela. Encontrou o entretenimento.

– Quem é você? – perguntou ao velho, cujo rosto nítido era ofuscado pela luz do Sol.

– Um conhecido de seus ancestrais. – disse o velho sem olhá-la nos olhos, exalando sabedoria de velhice por meio da tranquilidade com que falava. Para Beatriz, ele só parecia agradável.

– Eu não conheço meus ancestrais… só meu pai e minha mãe.

O velho olhou enfim para Beatriz e iniciou prazerosamente seu longo raciocínio:

– Me diga, criança: você acredita em profecias?

– Sim. Mas é coisa das histórias que meu pai me conta… eu nunca vi uma profecia! disse, esperta.

– As profecias não são vistas! Saiba que elas foram apenas inventadas.

– Por quem?

– Essa é uma história interessante! Sente-se. – satisfeito por ter tido a oportunidade de desenvolver seu raciocínio sem empecilhos da conversação. Por isso gostava de crianças!

– Antes de quaisquer seus ancestrais dos quais você tenha noção da existência, existia o que eu chamo de “Era Divina”: quando os deuses antigos andavam de carne e osso sobre o solo de Selector, o primeiro planeta. Havia muita discórdia entre eles; eram vaidosos e egocêntricos, e por isso não existiu por muito tempo outra espécie naquele mundo; era um prazer coexistir apenas entre os seus. E isso se manteve até o dia em que, num deus chamado Feldor, surgiu a vontade de criar. Feldor é o deus mais parecido com um ser humano que você pode encontrar, menina! Ele sentia empatia em olhares, ódio por atos e amor nas intenções. Talvez fosse mesmo um humano hiper-poderoso, mas foi com certeza o precursor da humanidade. Veja só a que ponto: num surto de audácia, roubou uma das quatro poderosas coroas dos deuses (artefatos que concentravam o maior poder do universo de Odyssey), e com seu metal moldou um cálice, que Feldor preencheu com a vida em líquido. Este é o artefato mais poderoso que existe hoje na galáxia! Dele, Feldor criou vida tangível, como a dos deuses. O primeiro foi seu filho, Falcro: ‘o ser ideal para o mundo’, e em quem Feldor depositou toda a sua esperança contra aquela sociedade podre que os deuses formavam. É claro que Feldor foi condenado à morte pelos deuses, considerado uma ameaça à própria espécie. Enquanto isso, Falcro ficou encantado pelo poder de criar vidas, e ia criando, e criando, por bel prazer. Mas passado um tempo, quase todas as proles geradas pelo cálice foram exterminadas pelos deuses. Inclusive, foi por Falcro que surgiram os primeiros magos: produtos da diversão de uma criança tola… – ele olhou a pequena com cuidado no semblante – sem ofensas…

– E quanto às outras três coroas? – Beatriz retrucou, atenta à história e sem se sentir ofendida.

– Sim, as coroas! Os deuses tinham medo que mais poder caísse em mãos de algum outro insano como Feldor, então um feitiço foi elaborado por eles em acordo com o Sr. Tempo: numa era específica, num só tempo (portanto, não hoje), as coroas ficariam guardadas sob os seus respectivos reis. Em um lugar bege chamado de Egito, os três deuses mais macabros de todos, chamados Hórus, Sobek e Anúbis, zelados pelo poder do Sol eterno, guardam os portões das três pirâmides, e em cada uma delas está escondida uma das três Coroas do Poder. Mas é apenas aí, onde e quando se encontram as coroas. E teoricamente, o único que sabe onde e quando está é o próprio Tempo!

– O que é “teoricamente”, senhor? – perguntou, com dificuldade de pronunciar a palavra em questão.

– Na nossa língua, significa que é “mentira”. – então Beatriz se pôs a pensar com nítido esforço.

– Então… quem mais além do Tempo sabe sobre esse Egito?

O velho sorriu, olhando nos olhos da criança inocente por alguns segundos.

– Apenas um ser tímido e desconhecido, que tudo sabe sobre tudo no universo. – com essas poucas palavras, ele despertou uma onda de arrepios desencadeados pela espinha de Beatriz, cujos olhos brilharam só por pensar “se existe um ser que sabe tudo sobre tudo… ele deve contar as melhores histórias!”. – Agora vou prosseguir com minha história, pequena, pois esta eu nunca contei a ninguém!

– Sim, senhor… – e pôs-se a refletir sobre o velho.

– Daí então é que surgiu o primeiro resquício de prudência naquela sociedade problemática de deuses: eles passaram a pensar no futuro. Talvez até sobre a extinção de sua espécie… – ele completou com jocosidade – mas eles não contavam com nada como os Corzer! Na verdade, os azuis foram a maior surpresa da história de Odyssey… Enfim, perceberam como o futuro era inevitável, e blá, blá, blá – dessa vez foi Beatriz quem sorriu -, e então surgiu esta palavra no vocabulário dos racionais: “P-R-O-F-E-C-I-A”. É a ideia de que o Tempo há de se vingar dos que fizeram algum tipo de mal. O tempo existe, garota, e ele é mesmo muito traiçoeiro, mas apenas contra quem o atiça. Mas, voltando à Profecia: é uma das palavras mais belas de Odyssey. Oito letras, e nenhuma delas se repete. – ele parou por um tempo, e concluiu – E essa é a história da Profecia em si, uma das palavras mais importantes que estão ao alcance de humanos como você… e eu, claro!

A garota, já desconfiada havia muito sobre o velho, pediu-lhe quase que impondo-lhe:

– Conclua a história!

– Bom, eu concluí!

– Não a da palavra; conclua essa dos deuses… – um instante de silêncio de desentendimento – Quem são os três deuses? Qual é a Profecia? E quem é o herói dessa história? – então ele estranhou por uns segundos a criança que gostava tanto de detalhes numa história.

– Você será um dia uma grande contadora de histórias! – e deixou escapulir um pensamento – se esse dia chegar… – um momento de estranheza, passou – Mas certo, criança, certo; concluirei a história. Sua pergunta sobre os deuses é extremamente pertinente para um fim necessário; então, segundo as lendas dos primeiros humanos: sob a sombra da primeira pirâmide, há Anúbis, o cego. Diz-se que é o ser com menos emoções que já viveu. Ele é justo, incapaz de sentir ódio por qualquer um, assim sendo aquele que julga e encaminha os mortos até o reino da Sra. Morte. Sob a sombra da segunda pirâmide, Sobek, o feroz. Diziam alguns que este representava a pior parte da natureza. Como se um dia Odyssey tivesse precisado expurgar algo horrível de si, então Sobek nasceu como a personificação do horrível natural; a maldade do Caos. Mas ainda assim, ele é a natureza, e por isso é o mais poderoso dos três. O indomável! E por último, sob a magnitude da terceira pirâmide, está o igualmente magnífico, Hórus, o perspicaz. Este é o líder da Trindade. O deus mais audaz, encarnação do Sol, e por consequência, o deus mais cultuado de todo o Egito. O papel do Sol nesta terra bege, garota, é fundamental. O Sol é fundamental, na verdade, durante todas as eras. Mas acredita-se que ali – ele indicou o Sol brilhante e forte à Beatriz – é que Hórus está eternizado.

– Você está… – hesitou – o senhor está me dizendo que aquele é Hórus? O deus maior está ali então?

– Não exatamente… aquele é apenas o seu olho, que tudo vê em ocidentes e orientes… – os dois contemplaram sua magnitude por um instante, e então o tom ficou fúnebre – Devia ser Hórus para sempre, mas então chegamos à Profecia: o Tempo virá em algum momento, em pessoa, para cobrar sobre este acordo com os deuses egípcios. Iniciará sua jornada comparecendo a este Egito eterno, que ele encontrará graças à marcação que fez para selar o feitiço: “a palavra mais dita, no lugar mais óbvio”, os quais os deuses desconhecem, e que é simplesmente a única linha tênue que mantém o feitiço; e aí, no Egito, o Sr. Tempo tomará as três coroas para obter força máxima. Depois, irá ao momento da Profecia realizar seu ato final: comer o olho de Hórus e exterminar ainda toda a vida que existir quando ele pairar sobre Odyssey. Nada poderá impedí-lo! – Beatriz ficou pasmada, e o velho completou – É claro que essa narrativa é só uma lenda!

– Então – num último suspiro de esperança -, não há herói nessa história?

– Bom… – subitamente, o berro cortou o fio da meada, e o clima de tensão foi cessado pela voz grave e raivosa de Josué: “O que é isso?”. E o velho surpreendeu e confundiu a pequena Beatriz ao revelar: – eis aí o nosso herói!

Velozmente, ele abaixou-se e, como um bom contador de histórias, envolveu aquela pela realidade, pedindo à jovem que aproveitasse o Sol, pois ele logo cessaria; e quando ele se virou para correr, se desculpou:

– Perdão eu não me apresentar, pequena Beatriz – ele sabia o nome dela! -, mas eu me chamo Orisus.

III

– Orisus? – gritou aterrorizadamente surpreso Josué – Você disse que aquele era Orisus?

– Sim. O senhor o conhece? – perguntou surpresa enquanto o pai a ignorava e enfrentava uma epifania.
Olhando para o céu e tentando processar em seu cérebro meramente humano o aterrorizante fato de ele ser o herói, e portanto o protagonista de mais uma história – e ainda, claro, todos os outros detalhes da poderosa história que sua filha lhe contara.

– E contou a história com excelência nos detalhes, pequena Beatriz. – disse a voz vigorosa da qual apenas Beatriz se recordava, vinda de alguém próximo a eles – Eu estava certo sobre você, afinal!

E vinha então caminhando de dentro da floresta aquela lenda viva que era Orisus, com suas vestes negras e longas e seu ar de sábio atormentando, andando agora pela sustentação do cajado – como se não tivesse ainda há pouco corrido que nem um veado com muito amor próprio. Concentrada em seus tons negros, a luz do Sol fazia com que sua figura brilhasse aos olhos de Josué. Foi instantâneo e inevitável a viagem de sua memória aos momentos com seu pai – os contos, os personagens, as hipérboles, os eufemismos, metonímias, metalinguagens e os risos. Os risos que comungaram enquanto meros familiares e enquanto recíprocos parceiros. Orisus para Josué significava um passado em que ainda havia esperança de que tudo desse certo, e em que o atual presente era apenas o horizonte belo de então. E do horizonte belo de agora, vinha o passado, caminhando meio árduo em direção a ele, Josué. E foi então que tudo se propôs a mudar, e o tal ‘passado’ era quem lhe fazia a proposta:

– Josué Jorge! Como é bom te ver assim, meu querido. Bom te olhar, e bom ver que você gerou uma prole (e uma prole e tanto)! – tentou ser cômico, mas não combinou com o espanto.

– … – não conseguia pensar em qual pergunta fazer primeiro, então foi pai uma última vez e protegeu Beatriz, se direcionando a ela – Querida, entre! – e a garota correu para casa.

– Foi bom ter feito isso, pois a proposta que tenho é impactante… – disse Orisus, pedindo que Josué se sentasse.

Josué então se levantou e proferiu uma pequena frase pesarosa enquanto olhava nos olhos de Orisus:

– Eu já sei do que se trata.

– Então deve saber que não há outra escolha!

– Mas eu não entendo… você mesmo disse: o Tempo é inevitável! E esse ataque suspirou desesperança – vai acontecer de qualquer forma.

– Sim, minhas palavras foram sinceras quando disse “inevitável”, mas ainda existe uma esperança para a galáxia… e para a vida de Odyssey.

– Então me explique por favor. Eu não entendo! – suplicou Josué.

– Sem as Coroas do Poder, o Senhor Tempo não terá meios o suficiente para extinguir a vida de Odyssey! Essas são as coroas da criação, cujo poder é parecido com o do Cálice da Vida; por elas se cria, e por elas se extingue também, da mesma forma. Isso significa que – Josué completou:

– Se o Tempo não as tiver, existe uma maior possibilidade de que reste vida em Odyssey. – Orisus completou:

– Porque o ataque não será exato.
Ficaram longos instantes calados; Orisus em espera e Josué em reflexão. Então Josué perguntou:

– Ele é… é o Tempo mesmo?

– O Destino em pessoa. Irmão da Morte, e etcetera. – respondeu Orisus de bate-pronto. O silêncio pairou novamente, e Orisus o quebrou, concluindo – Eu sei onde e quando estão as Coroas do Poder, e sei como chegar até lá. Só preciso que alguém entre nas pirâmides, encontre as Coroas e as traga para mim; eu completo o serviço, tirando-as do alcance dEle. A destruição não será completa!

– E por que eu? – perguntou com mais firmeza agora Josué, como uma criança, fitando suplicante o detentor das respostas, que fez de bate-pronto novamente:

– Porque precisa ser o melhor.

– E quanto à Ulyssys?

– Não passa de um grupo político.

Josué lacrimejou.

– E quanto a elas? – apontou para a casa – Você pode protegê-las?

– Nada pode contra Ele!

– E como espera que eu abandone a melhor coisa que já me aconteceu na vida?

Como espera que eu deixe minha família? – quase chorando por completo.

– Eu apenas sei sobre o seu ego… – pausou – e você reconhece o bem maior!

– Não pode falar sobre bem maior! – Josué gritou descontrolado, e essa foi a deixa para as lágrimas caírem todas, inteiras.

Essa também foi a sua deixa. Virou de costas para Orisus e zarpou chorando em direção à casa. A cada passo engolia um choro, e a meta talvez fosse chegar em casa com a postura intacta de pai, e deixar que caíssem com as lágrimas todas as suas aflições no campo. Precisava pisar em casa com o sorriso e o sarcasmo habitual de quem está com tudo sob seu controle. E esse era seu esforço: o fingimento. A troco de manter esposa e filha calmas diante de tantos problemas. Sem saber até mesmo o que ele havia decidido, como um jovem imprudente que até lembrava o Josué antigo, tinha que mostrar que estava tudo bem, comer com a família e não fazer nada. Esperar pelo fim da galáxia sentado no sofá, e assim talvez morrer feliz com seus dois amores durante um filme preferido, e então aproveitar o silêncio da morte. E a galáxia inteira faria o mesmo.

Odyssey morreria pelo Tempo. Enquanto Josué caminhava em nítida negação, a confusão da cena que se fez ainda agora não afetava Orisus. Por algum motivo, ele cria num desfecho para aquela história, e só o que fez foi esperar. Sentou-se na grama e assistiu ao pôr Sol por entre aquelas árvores. Aproveitou aquele momento como nunca ninguém antes, pois era o único abençoado pela ciência de que aquele seria o último pôr do Sol. Enquanto o Sol morria para nunca mais nascer, ele calou sua mente para observar a dádiva.

E então o Sol morreu. Foi o tempo exato até a audição de Orisus captar os mesmos passos que se foram em pranto, voltando agora decididos. Era Josué, e tinha entendido o ‘bem maior’ a que Orisus se referia.

– Foi uma boa despedida? – Orisus perguntou.

– Não importa! Só não pode ter sido em vão. – respondeu Josué, obstinado e abalado.

– Vamos. Eu te levo até lá! – disse Orisus enquanto se levantava.

E os dois foram floresta adentro, e depois planeta afora.

IV

No espaço, pouco conversaram; cada um vidrado no seu objetivo. A pouca conversa se resumiu ao necessário:

– Você conhece a Constelação N.E.O.N.? – perguntou Orisus.

– Não.

– Eu diria que é basicamente um túnel do tempo; nos leva para quando quisermos. Basta saber onde desembarcar. – e o silêncio pairou.
Moveram-se mais um pouco, até Josué perceber que estavam indo de encontro com uma estrela azul. Cada vez mais preocupado, perguntou o porquê daquilo, e Orisus, como resposta, ordenou “tape os olhos, os ouvidos e as narinas”. Cada vez mais rápido, cada vez mais perto da estrela, cada vez mais incômodo, veio a colisão; mas Josué não viu nem ouviu nada.

Quando destapou os olhos, enxergou novamente: dentro de instantes, o Sol brilhava como nunca, havia calor extremo e o mundo era bege. O horizonte era de areia, e três enormes edifícios beges pontudos compunham-no, apontando para o céu azul do lugar. Aves gritavam, monstros mugiam e a água corria livre no curso do grande rio. Tudo parecia extremamente natural, até o solo rapidamente começar a tremer, e ali estavam os verdadeiros monstros. Três bípedes animalescos, com poderes inimagináveis, sem chance de qualquer confronto direto com os quais; ele tinha de passar despercebido. E enquanto Josué fazia as análises de guerreiro, Orisus resolveu apontar um empecilho importante:

– Lembre-se: permanecer durante muito tempo fora do seu tempo habitual resulta no que eu chamo de “Perda de Época”… você pode ficar preso aqui para sempre! concluiu esperançoso – Eu estarei de volta no tempo limite!
Josué concordou. Horripilante a hipótese de ficar preso num quintal com três divindades perversas e poderosas. Subia constante um frio pelo estômago.

– Mais alguma coisa? – perguntou Josué.

– Sim. Seu único desafio não é burlar a atenção dos deuses…

– Como assim?

– Estes monstros que você ouve – indicou os sons graves e os gritos distantes – estão aprisionados no interior das pirâmides, tão dispostos a te impedir quanto os deuses. Basta não tocá-los e nem soar barulho algum perto deles; são cegos, e por isso mais ferozes que tudo. – Josué compreendeu calado, e após um momento pôs para fora a pergunta que o corroía por dentro:

– E Beatriz…? – uma lágrima escorreu.

– Vou mantê-la bem até o fim.

– Obrigado! – Josué soltou, no tom mais sincero que existe – E adeus.

– Adeus, amigo. – disse Orisus, igualmente sincero. E, prestes a fechar a nave, Josué já havia se virado, ele se lembrou com urgência e abriu uma fresta na porta – Ei! Josué olhou-o – Sobre a história, você entendeu?

– O que?

– O selo! Entendeu qual o selo?

– Ah… não!

– É a palavra querida! – pelo semblante de Josué, não havia entendido P-R-O-F-E-C-I-A. – ficaram se olhando – No chão!

– “No chão”?

– “O lugar mais óbvio”: sob o solo que você pisa. Bem debaixo de toda essa areia! Debaixo dos seus pés…

– Certo. – Josué achou desnecessário, e se despediram novamente.

O único que via necessidade era o contador de histórias que odeia pontas soltas. Então Orisus fechou a porta da nave e saiu como um facho de luz. Josué agora estava sozinho, e via o cego Anúbis de carne e osso marchando forte em frente à primeira pirâmide. À espera dos seres mais poderosos do universo para o combate. Cada passo que o deus pisava firme, estremecia o chão, que vibrava e trazia uma sensação ruim a Josué; arrepios. E diante de uma mente caótica pela saudade dos entes queridos, pelo medo de falhar, pelo peso do propósito, e então pela vontade de salvar a galáxia; e de um espaço tão calmo, agradavelmente natural, o que restou a Josué foi respirar fundo e partir na direção do perigo encarnado. Nosso herói jamais deixará Odyssey sucumbir ao Tempo!

SUA ODISSÉIA COMEÇA AGORA…