Conto: Camaleão Divino

Foi naquele momento, na noite eterna: o céu de Trunkan sendo rasgado violentamente pela estrela mais única de todos os tempos. Deixado o estranho rastro azul no céu, ela veio vestida de salvação, mas sob a jura secreta de ser ruína… Fato é que aquela estrela, que, depois de chegada, descoberta na verdade como nave alienígena de combate, era o novo! A oportunidade perfeita para evoluir e prosperar a paz naquele planeta turbulento. Por isso, os Trunkanianos foram calorosos na recepção do meteoro, e os especialistas do Esquadrão-X de defesa à paz de Trunkan é que inspecionaram a nave. Externamente, a primeira novidade: era feita de um material inexistente no planeta; de alguma maneira, aquela aberração de aspecto incolor suportou o atrito da atmosfera e o forte impacto no solo sem nenhum dano. Internamente, não pôde-se concluir o mesmo sobre seu condutor; já não existia mais um corpo. Eram alguns pedaços sólidos de um ser hexápode, mas a maioria já era líquido – ele chegou completamente desfigurado, sendo, assim, recolhido para fins de estudos. O mesmo ocorreu com a nave, mas não da mesma forma.

Diagnosticaram-na, rapidamente e diante de estudos exclusivos sobre a sua engenharia, como uma exímia e inigualável máquina de combate, pronta para o uso imediato – posto que o uso imediato era realmente necessário. A ciência havia feito uma recente descoberta animadoramente amedrontadora sobre os três satélites naturais que orbitavam Trunkan: juntos eram fontes de uma energia colossal, cujos precedentes na galáxia eram apenas sobrenaturais. À primeira mão, dava medo; mas isso atribuía a Trunkan o potencial de se tornar o inédito planeta humano que deu certo na sua era. A notícia se espalhou pelo espaço sideral e, em questão de alguns anos, ataques alienígenas – humanos ou não – passaram a ameaçar com frequência a vida em Trunkan. Desde então, um esquadrão de defesa foi montado como prioridade extrema, e o Esquadrão-X foi, por um triz, a defesa de Trunkan contra as invasões. No entanto, as perdas eram severas, e a tecnologia disponível não se mostrava suficiente contra a potência alienígena – os líderes sabiam que era só uma questão de tempo até o planeta ser completamente suprimido pelos ataques…

O luto presságio se manteve até o dia em que a esperança rasgou o céu escuro para trazer perspectiva, e a nave dos céus, então, se tornou a base, não só de toda a força militar aérea do planeta, mas também da ciência em si. A então batizada oficialmente como X-1 – primogênita do Esquadrão-X – e, popularmente, como Camaleão Divino, tinha, estranhamente, uma tecnologia extremamente compatível com as necessidades de Trunkan – soava como uma ajuda de um planeta gêmeo!

Assim, as novas frotas aéreas, lideradas sempre pelo lendário Michael Gabes, a bordo da X-1 – que permanecia a nave mais eficiente entre todas -, possibilitaram estabilidade à saúde do planeta. E, se tudo era progresso, o grau de proteção também apenas crescia: paralelamente a tal sucesso, boa parte das forças militar e científica Trunkaniana foi destinada às três Luas coradas. Ao todo, 72 estações de defesa e inteligência foram instaladas nos satélites, e suas funções eram explorar a imensa energia, aplicá-la no planeta e empregá-la de todas as formas em prol dos humanos.

Para isso, centenas de milhares de mãos e cérebros se instalavam ali, permanentemente, entendendo que manusear aquela energia era o trabalho de suas vidas. Junto dos cientistas e operadores, estava a sua proteção: humanos armados cujas vidas, dessa vez, valiam a segurança das estações. Para ser um Protetor Lunar – um dos cargos mais almejados do Esquadrão-X -, era necessário um treinamento rigoroso e longo de táticas, técnica, força e resistência; era necessário se tornar uma máquina!

E, no quesito de defesa, uma das funções às quais a energia havia sido direcionada era a da manutenção de um campo iônico, interligado pelas Luas, de proteção ao planeta. Trunkan se tornou impenetrável com o passar do tempo – que mudou de fato as coisas por ali!

O Esquadrão-X conseguiu manter a paz a que fora disposto. Mais especificamente, a X-1 junta do seu mais compatível parceiro: Michael Gabes, o homem que vive em função de uma máquina! Se houvesse um medidor de amor e reciprocidade em Trunkan, X-1 e Michael estariam disparados no topo. A reciprocidade, no caso, foi detectada facilmente no início dessa relação. Na parte mais crítica das batalhas contra invasores, a esperança que a nave havia trazido em sua chegada quase se estava indo embora pelo fato de nenhum dos melhores e mais antigos pilotos de aeronaves conseguir comandá-la. O problema era complexo demais, pois, na teoria, eles já sabiam a solução… A engenharia da nave, seus comandos e controles, foram rapidamente compreendidos e decifrados graças ao trabalho ardiloso e ininterrupto, por meses, dos melhores engenheiros de Trunkan. Sendo assim, alguma coisa misteriosa impedia as respostas da nave. Houve sim vezes em que, por emergência extrema, os pilotos foram designados ao combate a bordo da X-1, e foi aí que a nave traiçoeira sugou em tamanha crueldade a esperança que há pouco havia concedido; se mostrou complexa e aceitavelmente incompreensível quando negou tiros e escudos nos momentos cruciais e, assim, matou sem escrúpulos os seus comandantes. E o processo de desistência e abdicação da nave se iniciou; ela seria sucateada como a carcaça de um veículo moribundo qualquer. Eis que, num dia desgraçado para o inexperiente piloto que portava os seus dezenove anos, Michael G., que havia acabado de assistir à morte de toda a sua família – aqueles pelos quais fazia sentido viver… e amar – por uma bomba banal de um de seus aliados durante uma batalha. Foi necessária a solidão mais vil e vã de todas as malditas sensações para que, num surto de raiva, tentativa de vingança e suicídio, este insano invadisse o descarte de veículos do Esquadrão-X, adentrasse a cabine do luto e, consumido pela chama, decolasse rumo ao próprio fim; e, da forma mais irônica, trouxesse novamente esperança ao seu planeta. Esse descrito foi o contexto da primeira vez que todos os olhares Trunkanianos que espectavam a batalha brilharam ao raio azul feroz que, em velocidade quase inconcebível à mente, destroçou sozinho um exército inteiro de naves alienígenas. Assim foi descoberto Michael Gabes: o único piloto do Camaleão Divino; aquele que, sem motivos, despertou sua reciprocidade.

Vinte anos passaram e a paz estava plena em Trunkan. A essa altura, Michael Gabes fazia a típica rotina de um velho herói saudosista de seu tempo, mas também grato pelo passar dele. Tal rotina consistia em jamais abandonar sua melhor amiga. Assim, como das outras vezes, ele se dirigiu até o altar da X-1 no museu do Esquadrão-X, entrou na cabine e, em resposta sincera, a nave sorriu ao ver um velho amigo. Ele refletiu sobre a solidão do pobre Camaleão Divino, não fora ele, Michael, na sua vida – uma máquina, apenas uma máquina era o que era ao mundo; era em seu metal que as marcas bélicas eternizavam as dores de só ser guerra; era em seus comandos que ninguém enxergava livre arbítrio… Pobre nave solitária. Não fosse Michael Gabes para fazê-la sentir-se zelada por amor, a humanidade já seria lenda para uma outra espécie, e Odyssey talvez tivesse perdido um dos últimos planetas ainda habitados por humanos naquela Era tão longeva de todo o resto – o tempo não foi gentil com Odyssey. Era de importância galáctica o Camaleão Divino!

Se solidão era o que sentia a máquina, o humano valorizava todas as homenagens que encontrava a seu respeito e da X-1 mundo adentro. Todas as imagens, as mensagens, as demonstrações de carinho; tudo deixava claro a sua importância para o ecossistema. Os prédios, painéis luminosos, as vias; todos os horizontes cheiravam a Michael Gabes e X-1. Até mesmo nos céus o formato das nuvens estampava sua imagem, perpassados, ao longe, pelas Luas azul, vermelha e amarela – e, nesta última, em alguma das 24 estações instaladas na superfície, o café ficou pronto. O jovem cientista, consciente da injustiça sofrida pela função designada, era quem levava as bandejas aos montes com os copos de café instáveis aos seus superiores. Dentro do elevador transparente, diante de pensamentos amargos, admirava o horizonte amarelo e preto – da parte da Lua que não estava sob a proteção do campo iônico – e, ao longe, no espaço sideral, as estrelas brilhantes refletiam em seu olhos a própria infinitude das possibilidades, e seu peito magicamente se enchia de vigor, até, no horizonte, na fronteira entre o solo e o espaço, sua visão captar a aparição de um ser grotesco, apequenado pela distância e engrandecido pela lentidão com que se movia, cravando no solo seus seis tentáculos enormes que suportavam a cabeça e, emitido por ela, um raio azul que percorria o solo, num rastro de destruição, em direção ao elevador. A mão trêmula do jovem cientista, após derrubar as bandejas no chão, foi capaz de pressionar o botão vermelho de emergência, e uma voz metálica soou em seguida: “Invasão! A Lua Amarela sofre uma invasão!”. Esse era o som que orquestrava a dizimação dos milhares de Protetores Lunares como moléculas. E, no horizonte, mais hexápodes surgiram do chão atrás daquele para firmar a mensagem de destruição da Estação 4 da Lua Amarela: “Perigo extremo!”. Dessa forma o alerta foi espalhado, e o caos se deu início novamente.

Outra invasão!

A mensagem tomou os painéis luminosos e os prédios, suprimindo a imagem de Michael Gabes, que, de dentro da X-1, observou no céu limpo a que admirava ainda agora o surgimento de uma catástrofe encarando o planeta. Um orifício colossal, de tamanho proporcional ao de Trunkan, tomado de uma luz em ascensão, como um raio que se prepara ao disparo. Michael visualizava o próprio apocalipse quando, por um holograma gerado pelo painel da X-1, soube da sua solicitação para o combate: “O mundo precisa de vocês outra vez!”, foi o estopim do desejo de lutar pela existência da espécie. Foi o necessário para fazê-lo ativar a nave e partir rumo ao apocalipse com a sua parceira eterna. No início do percurso, o medo constante que sentia enquanto humano causou a indagação de horror: “O que é isso?…”.

O que era aquilo? A pergunta jogada ao acaso foi absorvida pelo organismo da nave, que sentiu necessidade em saber a resposta. “O que era aquilo?”… A nave se lembrou:

O mundo estava sob um último ataque, à beira da destruição total. Uma grande nave para o exílio de uma colônia de Kirgonianos – os que manteriam a espécie – e um pequeno organismo complexo hiper-resistente, hiper-veloz e hiper-inteligente, a bordo do qual estava o filho do líder Kirgoniano – aquele em quem ele mais confiava. Este último organismo complexo deveria cumprir seu propósito de encontrar pelo espaço o planeta mais equivalente ao dos Kirgons – um planeta gêmeo -, e, quando encontrasse, uma mensagem automática seria enviada à grande nave, que viajaria imediatamente ao seu novo planeta, o qual a colônia da grande nave povoaria como o novo mundo Kirgoninano. Eis que, após dezenas de gerações Kirgonianas, incontáveis anos-luz e inconcebíveis galáxias sondadas, foi em Odyssey – um lugar que já passara por muitas Eras -, no planeta Trunkan que,

“naquele momento, na noite eterna, o céu de Trunkan foi rasgado violentamente pela estrela mais única de todos os tempos. Deixado o estranho rastro azul no céu, ela veio vestida de salvação, mas sob a jura secreta de ser ruína…”.

A X-1 caiu do céu, e a mensagem instantânea “Planeta encontrado!” chegou à grande nave com a localização exata do organismo complexo. Uma viagem espacial imediata que levou 20 anos humanos, e, assim, lhe veio a resposta: os invasores eram Kirgons; vieram para finalizar o plano de povoamento que, desde o início, já contava com uma espécie habitando o novo planeta; e a solução para esse impasse era Kiren: o disparador de um raio, instalado na grande nave, capaz de extinguir a espécie sem danificar o planeta – soava como uma arma biológica que precisava de muita energia para ser carregada, e por isso o primeiro ataque com as grandes Sentinelas hexápodes seria às Luas, sendo a função das Sentinelas drenar a energia do núcleo dos satélites com seu Raio Atrator.

Não faltou à X-1 vontade de responder pesarosamente à indagação genuína de Michael: “Isso, meu amigo, é a sua extinção!”, e livrar-se da culpa que sentia com um sincero “Perdão!”. No entanto, lutar valia mais. Não havia conflito interno: a conexão da máquina com o humano superava qualquer outro propósito eterno – até mesmo o seu, ao qual fora programado havia muito tempo. A máquina, ali, concretizou o milagre do livre arbítrio, e negou com toda a sua autenticidade a sua programação… escolheu amar. E na sua velocidade feroz, chegou à primeira das três Luas, à primeira das 72 estações, e se pôs em fúria contra a primeira Sentinela, que, raivosa contra o organismo traidor, disparou nele seu Raio Atrator. Lutando contra a atração da Sentinela, bastou ao Camaleão Divino soltar uma de suas bombas Prockten que, sugada pelo raio atrator, explodiu com beldade artística a cabeça do hexápode e derrubou os restos de seus tentáculos no solo amarelo. Apenas assim é que os Kirgons a notaram, e a X-1, pronta para liberar seu ódio contra o passado, entregou sua nova alma a uma guerra que era apenas sua.

E a nave se pilotou!

SUA ODISSÉIA COMEÇA AGORA…