Conto: Plano Z

Poeira cósmica no metal do tanque.

Dentro da cabine, o som alto e as cenas predominantemente vermelhas do visor compunham o clima agradável e saudoso – as saudações, no caso, eram aos Defensores da Liberdade. Em meio ao show de luzes amarelas, laranjas e vermelhas, os banquetes desidratados o nutriam de saudades da comida de Julia, num domingo à tarde em casa – era onde estaria, senão por interrupção de seu trabalho aparentemente tão urgente. Se tratava, pelo que ele entendia, das Patrulhas de Manutenção da Normalidade Galáctica (PMG) – uma medida de contenção do CCO contra todo tipo de anormalidade perigosa e eventual em Odyssey. Isso significava, na prática, um cargo tranquilo, sem a exigência de muita responsabilidade e que rendia mais do que o necessário para um pai de cinco filhos e do iminente sexto.

Foi da contradição desesperadora entre o recém desemprego e a gravidez acidental que surgiu uma oportunidade informada por seu primo. Com seis meses de trabalho, a propaganda o fizera crer que ele poderia quitar a sua casa, pagar suas dívidas e ainda assim levar uma vida tranquila até, no mínimo, o desmame do futuro pequeno Bento. Ele aceitou no momento da proposta pela necessidade, mas, passados alguns dias da elaboração desses novos planos, ele percebia estar realizando algo próximo ao sonho de ser astronauta de uma criança pobre que jamais teve a menor possibilidade para tal. O pequeno Jonas sabia que algumas pessoas iam para o espaço e até tocavam nas estrelas, mas a vida material em Lorikan suprimiu-lhe os sonhos por volta dos quinze anos – ano da primeira gravidez de Julia. Desde então, o espaço apenas se distanciou de sua vida, para retornar bruscamente aos trinta e sete anos, às vésperas do sexto filho, como reascensão da curva de sua vida. O grande Jonas passou então a encher a própria estima da sensação de importância nacional, planetária e até galáctica; por fim, se fez herói até o seu primeiro dia no espaço, quando notou a inutilidade e inatividade a que estaria sujeito nos próximos seis meses. Ali, ele era o Plano Z do CCO no caso da aparição de alguma anormalidade perigosa. Com a licença da sagacidade, colocou-se como um patrulheiro de quinta categoria; de quinta utilidade; quinta atividade e quinta responsabilidade.

Passados neutros cinco meses da então normalizada inatividade, ele se entretinha agora com o documentário saudoso “Operação Resgate”, dos Defensores da Liberdade, numa tentativa de reencontrar em si a magia nostálgica da heroicidade. Na Tornado, ele tinha uma vasta gama de opções audiovisuais para o próprio entretenimento e ignorava o fato de todas terem sido produzidas pelas alas culturais do próprio CCO; ainda significava liberdade de consumo! Dessa liberdade ele usufruía para conhecer a história dos defensores: humanos que morreram para impedir uma invasão causada pelos próprios métodos expansionistas do CCO, mas, como percebido por Jonas, morreram também defendendo a liberdade de alguns prisioneiros das gaiolas de cristais que o terrível Império Pulsar arquitetou. Graves e agudos atravessavam seu corpo para cessarem na janela da cabine, após da qual se estruturava imediatamente o vácuo infinito, impeditivo instantâneo da propagação sonora.

Agora as tais sensações diversas o transportavam para outro tempo, colocando-o sob o prisma heróico de uma guerra antiga – sensações tais que, pelo filme, o entretinham ante o reconforto monótono que o habitava durante todos aqueles cinco meses de, em pouco tempo, retornar à vida segura, material e amorosa com Julia e as crianças em Lorikan. Seria aquela somente uma fuga da previsibilidade por meio do êxtase artístico daquele documentário, não fosse a confusão de luzes, cores e direções que invadiam inadequadamente a sua experiência audiovisual, incomodando-o e despedaçando seu êxtase a um outro tempo e espaço para fazê-lo na vida real e presente. Foi refletindo no vidro atrás do visor que a luz azul captou a atenção de Jonas, interrompendo o seu processo e atraindo seu olhar pelo trajeto do raio até a fonte da luz.

Uma rachadura no vácuo!

Um delírio gravitacional ocorria num ponto de Odyssey, e, por graça do destino, o ocorria frente à última possibilidade de defesa – o tal Plano Z. No caso, Jonas: um homem há pouco conformado com a volta para Lorikan em segurança, porém, recém atormentado pelo clima heroico do caso dos Defensores e, portanto, com o peito cheio de coragem para afrontar o perigo. Foi esse homem que se deparou com o intenso brilho azul em estranha contorção, quase como uma fenda que tentava expurgar suas impurezas para uma nova galáxia.

Seguindo o protocolo emergencial, Jonas acionou a Central de Apoio PMG, cuja reação primária foi a zombaria coletiva à sua primeira fala fantasiosa:

Câmbio! Aqui é Jonas, da Tornado. Percebo o que parece uma ruptura no espaço. Talvez… uma fenda dimensional; não sei. – e escutou risadas ao fundo e o silêncio do atendente. – Como faço para subir uma imagem do que estou vendo? – indagou, exercendo toda a eficácia do seu complexo treinamento virtual. – Consegui! Agora vocês vêem o que eu vejo.

Dos risos, ele ouviu o silêncio pavoroso do atendente e os cochichos metálicos e assustados de fundo.

O que é isso?!

Pela imagem em tempo real, o espanto se seguiu: os espectadores assistiam no telão surgir do clarão azul formas simples e animadas, cinzas com detalhes coloridos brilhantes, respectivamente: vermelhas, amarelas, verdes, azuis e rosas. Todas em movimentos estranhos; agressivas e desorientadas, como se estivessem perdidas.

Elas vieram de um outro lugar! – murmurou um velho do fundo da sala – Killitron, Panatron, Fasttron, Pacertron e Behindtron… São o nosso fim! – e as vozes de contestação pairando:
Quem é esse?
Ouvi dizer que já foi um grande cientista um dia, mas hoje é um faxineiro da estação. – as vozes confusas ecoavam pela sala.
Não são formas simples… – voltou a falar quase indignado – Não vêem? São formas simplificadas à nossa dimensão! Esses seres não são daqui, e essa fenda não é um buraco banal. TIREM JÁ ESSE HOMEM DAÍ! – gritou, agora indignado de fato.
Sem alarde, senhor. Como o senhor entrou na sala de controle?
Eles conseguiram. Não vê? São túneis para outras dimensões, e Odyssey adaptou estes seres de formas inconcebíveis à nossa dimensão, pois só assim podemos vê… – o velho foi interrompido brutalmente pelo puxão de dois seguranças acionados antecipadamente. – ESSES SÃO TÚNEIS DO TERROR; SERÁ O FIM DELE! – ecoou esta última fala até o microfone, que captou o alarme do velho e o fez chegar baixo às saídas de som da cabine da Tornado.
O que foi isso? – perguntou Jonas, sendo aquela a única frase de todo o discurso que pôde ouvir – O que foi isso?! – novamente.
Patrulheiro Jonas, contenha a situação! Reforços estão a caminho e nós estaremos aqui ao seu apoio.
Mas o que eu devo fazer?

Um suspiro lento no microfone.

Boa sorte! – e a linha caiu.

Totalmente desorientado, Jonas desligou Operação Resgate do visor, olhou às formas animadas e, espiritualmente trajado de Defensor, ativou os tanques empoeirados da Tornado, acelerando-a rumo aos tais Túneis do Terror, tendo ali a única certeza de que aquelas incógnitas não pertenciam a Odyssey.

Ninguém vai passar! – jurou o herói.

SUA ODISSÉIA COMEÇA AGORA…