Um Papai Noel sombrio

Morris Scott Dollens

Eu me lembro daquela noite, há muito tempo atrás – não sei quando exatamente. Foi um dos maiores surtos já produzidos e desenvolvidos por Odyssey – e, na verdade, eu digo que a galáxia fez essa história apenas para me impressionar, pois eu fui sim o único espectador deste cômico conto de natal. Para a graça e a sorte de todos os simpatizantes das tramas de Odyssey, a solidariedade tocou meu coração criativo, e decido, assim, partilhar essa história quase que perturbadora com vocês, meus íntimos leitores.

Sem paciência para muitas explicações, eu julgo ser respeitosamente suficiente dizer-lhes que é uma história real, e que, portanto, se trata de uma crônica – mas com algumas anedotas a mais. Lembremo-nos, então, da infância: época instável de revoluções incessantes e despercebidas. É justo e minimamente decente apresentar o viés do autor, então eu assumo que odeio a infância e tudo o que a circunda. Assim, não pasmem: odeio os seres infantis – com exceção da extraordinária Beatriz, que conheci ao longo da vida. Enfim; para não me prolongar: assumo que talvez esse rancor me faça ver tanto humor nesse surto. Mas, para os seres humanos, eu lhes adianto que a experiência foi dolorosa, terrível e angustiante.

Portanto, a infância; o período mais crucial na formação da perspectiva do ser humano sobre a sua amada Odyssey, e acerca da sua vida complexa. Necessita de sonhos, de mecanismos exemplares de recompensa; consequência do que se causa. Sem esse tipo de mecanismo exemplificativo, não há aprendizado. E vale a nota: o mecanismo precisa ser justo, e a consequência, ligada diretamente ao pudor da causa. Em outras palavras, é necessário aprender a colher o que se planta. Imagine agora, leitor: a humanidade caminha na prancha tênue e podre da injustiça: o que será do futuro? Algo em que não queremos pensar. Essa humanidade infantil e imatura precisa de uma lição, e veja agora o motivo de Odyssey ser a minha maior amante: sua natureza é sustentável. Quem será que precisa dar a lição? É extraordinário, mas nada que seja racional é capaz de dar essa lição. Odyssey dá o exemplo, e apenas trabalhando dentro do mesmo modus operandi de desde o início dos tempos, a natureza dá a lição. Toda causa tem uma consequência.

Agora, eu juro que essa será a última nota que dou nesse texto: eu escrevo muito, leio pouco do que escrevo. Por isso, peço as últimas desculpas pela prolixidade evidente nesse texto. Partindo daqui, tentarei ser um pouco mais factual no desenvolvimento da “crônica” – apesar de saber que se torna quase um ensaio.

O Natal é o maior evento desse mecanismo exemplificativo que citei. Talvez seja o maior responsável formador da noção nos seres humanos sobre a lei da causa e consequência. Se você foi um bom humaninho ganha um bom presente; se não, simplesmente não ganha um presente. Mas o que acontece com as crianças terríveis? Os futuros seres imorais e inescrupulosos que destroçarão a sociedade e o ambiente. Algum dia, essas crianças infelizes serão responsáveis pela morte de outros seres humanos; serão responsáveis pela fome; perpetuadores de todas as mazelas da vida humana. Amplificadores do mal comum. O que resta a essas sementes cruéis? Bom, até essa noite de Natal, não se sabia.

Medidas cruéis precisam ser tomadas, e às vezes o “mal” precisa ser cortado pela raiz. E tudo isso dependia de um velho maltrapilho e quase irracional pelo qual não sinto simpatia alguma. Eu e o papai Noel começamos com o pé esquerdo, meu leitor. Não hei de dar detalhes sobre este encontro entre Orisus e Noel aqui nesta crônica, mas talvez outro dia.

Fato é que é um ser muito amoroso e empático, e simpaticamente rígido. Isso mesmo. Aquele velho não tinha culhão para fazer o trabalho sujo! Mas conseguia acatar muito amor em seu coração enorme. Isto é, precisava de muito amor para nutrir aquele coração tão grande. O Espírito Natalino é feito de amor.

Agora o conflito.

A humanidade chegou num ponto em que o amor se torna raro, até quase extinto. E de repente a época bela do Natal passa a ter o mesmo tanto de mazelas de outras épocas do ano. As pessoas não param de morrer, a fome não diminui, as lágrimas caem ainda mais, e não existem mais cartas destinadas ao velho; ninguém espera mais nada dessa galáxia falida; todos descrentes na sua espécie. Foi um cenário verdadeiramente triste, no qual a maioria das crianças tinham aquele perfil deplorável de “inescrupuloso em formação”. Quase todo mundo era terrível. Das ironias que essa história proporciona, talvez essa seja a maior: a fome do mundo significa a fome de uma entidade. Por isso é uma crônica extraordinária – eu digo que eu mesmo nunca ouvi um relato como esse. O mundo tangível dos humanos rompeu a barreira das entidades! Esse é o perigo de uma entidade se aproximar tanto emocionalmente dos humanos.

Se você for uma entidade e estiver lendo meus escritos, por favor, tome um marcador às mãos e sublinhe essa frase: não fique à mercê dos humanos. Você não é feito para depender! Depois de sublinhar, arranque as palavras do trecho e as engula. Tome-as como princípio, e seu propósito será muito mais fácil – você verá!

Aliás, para todos os tipos de leitores: lições dessa história, pois eu, em toda a minha magnitude, não sou capaz de encontrar moral nas histórias que escrevo.

Por fim, o resultado desse desequilíbrio. O velho amoroso foi desnutrido pela humanidade naquele momento. A fome frustra, a frustração enlouquece, e a loucura torna terrível. Nesta noite, então, o maior inescrupuloso do universo era o antigo pai do amor. Ele estava entre um tipo de fúria descomunal, uma angústia incomensurável e uma liberdade paradoxal. Foi como fechar os olhos, cessar a mente e violentar tudo o que se encontra à sua volta.

O velho saiu por aí roubando os presentes.

Isso é o que se faz com os terríveis: você tira deles! Nessa noite, ele nem ao menos se preocupou com a discrição de sempre, e as pobres crianças notaram com muita facilidade esse ser demoníaco. Alguns relatos dizem que seus olhos lacrimejavam enquanto sua boca sorria, e havia sangue no seu rosto – ninguém sabe de onde. Ele pegava tudo o que encontrava nas casas e colocava no grande saco vazio, quebrava vidros, destruía árvores de enfeite e engolia as estrelas do topo. Seus passos eram pesados. Ele batia os pés, estremecendo o solo e causando terremotos simultâneos nos planetas – faltou gritar “o vilão Noel está aqui!”. Foi confundido com um Corz, com um deus antigo, com um alien, com um invasor, mas ninguém suspeitou que aquela desgraça era o papai Noel! Enquanto a incógnita assolava os adultos, as crianças, todas todas aos prantos, curiosamente sentiam sua culpa naquela tragédia. Sabiam que aquilo era inevitável, pois elas compuseram apenas caos naquele ano. Foi a geração que transformou o Natal em trevas; foram as crianças que mataram o papai Noel!

dos Textos perdidos de Orisus